Vai no Bixiga pra ver o quilombo do Vai-Vai

Adyel Beatriz
3 min readFeb 19, 2019

--

“Quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver, vai no Bixiga pra ver…”

Esse trecho pertence à música Tradição, de Geraldo Filme, que homenageia a história do Grêmio Recreativo Cultural Social Escola de Samba Vai-Vai. E é justamente a tradição que o Vai-Vai protege em busca de um futuro que preserva a identidade do povo preto. O Bixiga, região das cantinas e construída pelos imigrantes italianos, como dizem, é preto.

O Quilombo do Futuro é o samba-enredo do Vai-Vai, que é do Bixiga (distrito da Bela Vista), bairro da região sul do centro da capital paulista. Esse futuro é cantado e interpretado por uma mulher negra: Grazzi Brasil. Pela segunda vez, Grazzi é a única intérprete mulher do carnaval de São Paulo à frente da ala musical. Em 2018, Grazzi interpretou também “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão” , enredo do Paraíso do Tuiuti, no Rio. Grazzi tem o potencial de arrepiar quem a assiste. Esse ano, Grazzi, mais uma vez, está inteira em São Paulo e no Rio. Juntamente com Celsinho Mody, a intérprete permanece no Paraíso do Tuiuti em 2019.

O samba escrito por um grupo de compositores (que fazem parte Edegar Cirillo, Marcelo Casa Nossa, André Ricardo, Dema, Gui Cruz, Rodolfo Minuetto, Rodrigo Minuetto e Kz) é uma oração. Pede à Rainha do Mar levar o pranto, pede para Orum resgatar a identidade e clama pela justiça de Xangô ao povo negro. A comunidade ecoa porque o grito da senzala ecoou: “é que eu sou da pele preta, quilombo do povo, sou Vai-Vai. Um privilégio que não é pra qualquer um. Protegido e abençoado por Ogum”. Tem que respeitar. Aruanda, ê. A força de Palmares é herança que marca a vida de quem ama a Vai-Vai desde que ela foi fundada, em primeiro de janeiro de 1930, e por aqueles que construíram uma vida de memória e afeto pela escola e bairro.

O carnaval virou mercadoria. Já é sabido o esquema de compositores contratados e de até temas de enredos comprados. As escolas de samba se vendem para lucrar, o samba fica como moeda de troca e empobrecido de significado. No Bixiga, a tradicional velha guarda é presente como resistência na luta para que a escola resista e não caia em certos modernismos, empobrecendo, desse modo, seu significado e apagando sua história. Nem tudo são flores no Vai-Vai, há tensão entre membros e diretoria por vários momentos, muitos são contra a atual gestão. Neste ano, além das questões institucionais, um membro da diretoria agrediu uma mulher no ensaio técnico de janeiro. O vídeo da agressão se espalhou nas redes e causou, como tinha de ser, muita revolta. Muitos protestos para que a diretoria da escola impedisse o homem de voltar a qualquer cargo. A diretoria se posicionou, emitiu nota, e afastou o agressor. A Vai-Vai, conhecida por ser a Escola do Povo, teve sua história baseada pela luta à dignidade da população negra.

Apesar de todas as estranhezas, a comunidade segue exaltando a criação da Mãe África e agradecendo aos ensinamentos de Mandela. Em um Brasil de história cruel, em uma São Paulo que teima em apagar quem a construiu, o Quilombo do Futuro é necessário. A negra alma do Bixiga sorri porque, sim, pode sonhar.

Em um 2019 pesado socialmente e politicamente, Grazzi Brasil grita em vários momentos: “mais do que nunca, é preciso cantar o que é nosso!”. Punhos cerrados, a saracura está presente. Entra Vai-Vai, seu futuro é feito de muita história, tradição e resistência.

--

--

Adyel Beatriz

despretensiosamente escrevendo e lendo sobre tudo que me interessa e geralmente qualquer coisa me interessa, principalmente tudo. adyelbeatriz.contently.com