Os espectros de Salgado

Adyel Beatriz
3 min readAug 15, 2018

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Sebastião Salgado faz da fotografia uma ferramenta de captação de realidade literária. O real que se torna literatura através do olhar.

O documentário Espectro da Esperança já tem o nome como sugestão: imagens de esperanças quase que fantasmagóricas. Salgado que saiu do ramo da Economia buscando encontrar na fotografia além do que as estatísticas poderiam mostrar.

Foto do livro Êxodos de Sebastião Salgado

John Berger, escritor e narrador do documentário, encontra na obra de Sebastião Salgado um modo de pôr em palavras o que ele obtém através dos olhos. Na cozinha de sua casa, Berger conversa com o fotógrafo brasileiro sobre o seu último livro fotográfico: Êxodos.

“Não é bom morrer, Senhor, se nada resta na vida. E, na morte, tudo é possível, exceto pelo que sobrou na vida. Não é bom morrer, Senhor, se nada restou na vida. E, na morte, nada é possível, exceto pelo que alguém poderia ter deixado em vida.”

Cesar Vallejo

É com esse trecho de um poema do escritor peruano que o documentário se inicia. Salgado esteve muito perto da morte durante os momentos em que fotografava. Não literalmente, mas muito literalmente. Salgado lidou com a morte do outro. E a única ferramenta de poder dele, naqueles momentos, era a câmera. Logo no início do documentário, o fotógrafo frisa como a morte é sorrateira, ela atinge até o mais saudável dos homens.

Apesar da extrema realidade que as fotografias do Êxodos carregam, a poesia se apresenta na sutileza de cada retrato de Salgado. A problematização de um mundo globalizado às custas de vidas humanas fica clara quando o fotógrafo questiona, no documentário, a correlação do número de carros produzidos e vendidos e o número de mortes em decorrência de epidemias nos países subdesenvolvidos.

Êxodos tem este nome por conta das grandes diásporas humanas pelo mundo. Salgado acompanhou por seis anos, visitando quarenta e três países, milhares de pessoas se deslocando de seus lugares naturais em busca de melhores condições de vida ou, simplesmente, de sobrevivência. Através da fotografia, o economista e fotógrafo Sebastião Salgado se propõe retratar que a globalização tem um preço caro e cruel: “É a nossa realidade e devemos assumi-la”. A fotografia toma a sua posição de documento, de manifesto.

As fotografias de Êxodos aparecem não somente na forma de manifesto, mas também aparecem na forma de afirmação de existência. Crianças excitadas ao posar, interessadas pelo resultado daquele clique. A metáfora que o narrador usa, comparando Sebastião e sua câmera com o mundo, faz pensar que a fotografia pode ser sinônimo de salvação e consolo.

As crianças aparecem no fim do documentário como espectros da esperança. A partir da fotografia de Salgado e do contato com os pequenos fotografados, existe a possibilidade de existir em um mundo que elas não conhecem e em um mundo que não conhece elas.

As questões filosóficas e existenciais que assombram Sebastião Salgado não interferem a sua obra nem seu jeito único de fazê-la.

Se causa reflexão, não pode ser um erro, Salgado.

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Adyel Beatriz

despretensiosamente escrevendo e lendo sobre tudo que me interessa e geralmente qualquer coisa me interessa, principalmente tudo. adyelbeatriz.contently.com