dois de dezembro, 334
Rua Dois de Dezembro, 334, Flamengo/Largo do Machado, Rio de Janeiro.
São Paulo, 02 de junho de 2018. Eu e três amigas andávamos pela Paulista. Eu, acostumada com todo aquele brilho e gigantismo, elas, cariocas e extasiadas com o que viam, quase todas, pela primeira vez. Até que Daniel* nos parou.
Como é comum em grandes centros urbanos, fomos abordadas por Daniel*, que se encontra em situação de rua. Ele, após seu simpático cumprimento, começou a falar continuamente. Ele contava a história dele revezando o seu olhar a nós quatro.
Daniel é carioca. Já morou na Grécia com seu falecido companheiro. Lá, Daniel conta que usou heroína. Quando voltou para o Brasil começou a usar crack. Ele conta que seus pais, rígidos e extremamente religiosos, não aceitavam sua orientação sexual. Não tinha jeito e Daniel não aguentou. Hoje ele mora no entorno da Paulista, próximo à avenida Angélica, local onde habitam dezenas de pessoas que vivem na rua.
Daniel fazia questão de ressaltar que ele só queria comida. Ele não queria dinheiro, ele, como quem suplica, nos mostrou um mercado. Frango, arroz e óleo. Ele conta que há muitas pessoas doentes, sem saúde até mesmo para pedir, e ele era uma das pessoas responsáveis por levar comida.
Depois dos ataques massacrantes à Cracolândia, a situação de muitas pessoas vulneráveis e dependentes químicas piorou muito. Além da migração forçada para outras regiões da cidade, centenas ficaram feridas e em condições ainda mais desumanas. Daniel conta que veio de lá, também.
Quando Daniel estava terminando de falar, eu comentei que as meninas eram cariocas também e que todas nós morávamos, atualmente, no Rio. Ele já começou a se emocionar. Foi quando ele soltou “rua dois de dezembro, 334, Largo do Machado”. É ali que Daniel cresceu, é ali que seus moram até hoje e é ali que eu moro e uma amiga, presente naquele momento, moramos. Não exatamente no mesmo lugar, mas muito próximo.
Daniel chorou copiosamente. Ficamos ali por alguns instantes sem dizer nada. Ele chorava de soluçar, tentava formular frases. Dois de Dezembro, 334: era a única coisa que ele conseguia dizer firmemente e, logo depois, se entregava a sua emoção, a sua saudade.
Ainda em lágrimas, Daniel disse, apontando para o mercado, “vocês podem me ajudar?”.
No mercado, quando me viu com o celular nas mãos, Daniel empolgado falou para eu procurar por ele no facebook. Achamos o seu perfil e ele me mostrou suas fotos, seu trabalhos como, segundo ele, artista de cabelo afro. As imagens eram de por volta de 2013.
Hora de pagar. Daniel pediu para ficar com a notinha para que ele pudesse provar caso fosse questionado sobre a procedência dos alimentos.
Agradeceu com os olhos cheios de água. E falava o endereço de sua memória repetidas vezes. Falava também de outros lugares da cidade do Rio de Janeiro.
Mem de Sá, Lapa. Chorou.
Dois de Dezembro, 334.
Ele contou que corria no Aterro do Flamengo: “eu corria até o Santos Dumont”, suspirava.
Nos despedimos.
“ Que mundo pequeno” foi a única coisa que eu consegui dizer depois.
Andar na Dois de Dezembro nunca mais vai ser a mesma coisa. Eu estou longe do Daniel e perto, perto da saudade dele.
Talvez aquele momento tenha sido o mais próximo que Daniel esteve perto de sua família em anos.
A última coisa que Daniel disse ao se despedir foi Dois de Dezembro, 334, o número do andar e o número de telefone dos seus pais. Seguiu.